Viajar sozinha não é um divisor de águas

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viajar sozinha aos 50 anos

Nosso calendário gregoriano estabelece a virada do ano, como vocês sabem, em 31 de dezembro, mas não é privilégio meu sentir uma virada do ano exclusiva, a do aniversário. Aproveitei para viajar sozinha aos 50 anos em 2019, e a maré de retrospectivas desta época me inspirou a falar sobre a experiência, uma interpretação do tema Retrospectiva sugerido pelo grupo de blogueiras do qual tenho o prazer de participar, chamado 8on8. Confira ao final deste texto suas retrospectivas.

Esse tal de inferno astral

Quase dá pra ver a energia saindo pelos poros do corpo. É como o outono fora de época, roubando suas folhas, te preparando para entrar em repouso antes do renascimento. É como a fadiga que chega no momento da maratona em que sabemos que ainda faltam alguns quilômetros pela frente. Muita gente atribui a isso o nome de inferno astral. Se tivesse uma imagem para representá-lo, eu escolheria a de uma pessoa se arrastando para subir uma escadaria, como nos desenhos animados, o corpo moldado ao formato dos degraus, os dedos rígidos e doloridos, o rosto expressando fadiga e algo próximo do desespero.

E chega o aniversário, nosso ano novo particular, e depois da data, como mágica, as nuvens negras e baixas se dissipam e parece que tudo é possível: o mundo está ao seu alance, é só arregaçar as mangas, esticar as mãos e agarrá-lo.

Mas este não é um blog de viagens? Sim! Descobri como eliminar este peso anual viajando. Não é a descoberta da América, claro, mas foi significativa pra mim, talvez por ter sido tardia, porque sendo professora e fazendo aniversário em 24 de junho nunca pude viajar. Tardia e ainda rara.

Esperar 50 anos para viajar sozinha durante 15 dias e ter o aniversário que é a sua cara pode ser digno de inveja (branca, espero) para quem nunca teve esta oportunidade, de empatia para quem entende o quanto esta data é significativa, e até de indiferença e pouco caso pra quem não dá a mínima para datas ou para quem pode fazer isso com frequência. Convido a qualquer um dos três grupos para embarcar na leitura.

Adios, goodbye, auf wiedersehen, arrivederci, au revoir, inferno astral!

Uma colega todos os anos passa o aniversário em algum lugar apontado por um tipo diferente de mapa, o astral. Ela escolhe um, dentre alguns destinos selecionados pelo astrólogo, para passar por sua revolução solar, um conceito da Astrologia que marca o retorno do sol ao mesmo grau do zodíaco correspondente à posição identificada no momento do seu nascimento, ou seja, seu aniversário.

Eu, dona de meus próprios desejos turísticos, não deixaria um mapa astral ditar para onde ir (às vezes deixo as promoções de aéreo fazerem isso por mim, confesso aqui), então em 2016 fui para a Itália nas semanas que antecederam meu aniversário na companhia de uma amiga. Visitei as pequenas cidades muradas da Toscana, revi Veneza, Verona, Milão e Siena, e fui introduzida às belezas das Montanhas Dolomitas. Dias antes do meu aniversário, estava de volta, energias renovadas, cheia de novidades e novas paixões. Zero de inferno astral, nenhuma nuvem escura no meu céu, parecia ter antecipado minha virada do ano.

Meu aniversário de 50 anos na Itália

E para onde viajar para passar um aniversário mega especial? Pensei em finalmente tirar do campo dos sonhos o roteiro pela Grã-Bretanha, mas a Heidi que habita em mim gritou pelas montanhas. Aproveitei uma promo imperdível para a Itália, e organizei o roteiro para que estivéssemos nas Montanhas Dolomitas no dia do meu ano novo particular.

Passei o dia do meu aniversário caminhando com meu marido pelas trilhas leves e panorâmicas de Alpe di Siusi. Não teve bolo, nem presentes embrulhados em caixas ou sacos brilhantes, não teve musiquinha, velas ou festa junina, mas nunca passei um aniversário tão com minha cara como este de 2019.

Leia o roteiro desta viagem e dicas de viagem à Itália em Roteiro pela Itália em 15 dias

viajar sozinha aos 50 anos
Camiseta personalizada para a data!

Viajar sozinha aos 50 anos, na Suíça

Bem, a festa foi na Itália, mas o presente foi a Suíça. Em 30 de junho me despedi do maridão na estação Termini de Roma e tomei um voo para Zurique. A vantagem de estrear algumas coisas aos 50 anos é que não há borboletas no estômago e acho que potencializa-se a valorização dos momentos vividos em sua própria companhia.

Então imagine como, casada por 25 anos + 5 de namoro, eu carecia de uns dias só pra mim – fazendo o que eu mais gosto de fazer que é viajar. E viajando pela Suíça, país que tem 60% do território formado por montanhas!

Para ler sobre as cidades que visitei, roteiro e dicas gerais de viagem à Suíça, leia Suíça: Roteiro de 14 dias no verão

viajar sozinha aos 50 anos
Em Lauterbrunnen, Suíça

Afinal, como foi viajar sozinha

Algumas pessoas estavam curiosas para saber como foi minha experiência de viajar sozinha, e até hoje não tinha escrito a respeito porque não acho que tenha sido transformador ou um divisor de águas, como outras mulheres alardeam por aí, deixando as que gostam de viajar acompanhadas num misto de curiosidade e dúvida.

Viajar sozinha aos 50 anos é certamente diferente de fazer isso aos 20 e poucos. Para quem é jovem, sem muita experiência fora do âmbito familiar, viajar sozinha pode ser mesmo um divisor de águas, mas é claro que não foi meu caso.

viajar sozinha aos 50 anos
vista do castelo de Spiez, Suíça

Uma grande vantagem de viajar sozinha aos 50 ou em qualquer idade é poder fazer o que você quer, na hora que você quer, coisa rara para quem vive em família e por isso mesmo deve-se beber desta fonte algumas vezes na vida. Deliciosa a sensação de estar livre de concessões, de discordâncias que levam a pequenas frustrações e te impedem de fazer ou ver coisas que gostaria numa viagem.

Outra característica da minha viagem solo é que tive chances de viver os momentos da viagem intensamente. Meu marido é do tipo piadista, eu nunca consigo me entregar às emoções completamente porque ele me desconcentra e me faz rir, me trazendo de volta do mundo etéreo. Quando cheguei em Zermatt, ainda na estação, eu estava em êxtase, olhos brilhando de alegria por estar aos pés de um ícone dos Alpes, a Matterhorn. Se Álvaro estivesse comigo, teríamos sido práticos e deixado a plataforma e ido ao hotel rapidinho, sem sorver o momento.

Horas depois, tomei o trem para Gornergrat, e quando cheguei aos mais de 3 mil metros, de frente para a Matterhorn, eu chorei muuuuito. Daqueles choros descontrolados e barulhentos, que deixam os olhos inchados. Jamais eu teria me entregado tanto assim se estivesse com alguém. Por que chorei? Emoção. Sensação de pertencimento. Tristeza por não viver perto das montanhas. Não sei, mas se não estivesse sozinha não teria sido tão intenso.

Recuperada, consegui sorrir com a Matterhorn ao fundo

I look at all the lonely people

Uma ‘mágica’ acontece quando se viaja sozinha: é muito mais fácil conversar com estranhos, puxar papo e encontrar pessoas que também estão vivendo momentos especiais em suas viagens. Dois deles aconteceram num lugar cuja energia só posso definir como encantado, o Vale de Lauterbrunnen. No trem, uma inglesa confidenciou ter se mudado para Abu Dhabi para esquecer um relacionamento dolorosamente terminado. Quase um ano depois, ali no trem, ela chorou ao contar sua expectativa de se refazer num encontro consigo mesma nas trilhas da região. De meu lado, contei o quanto para mim estava sendo significativo estar sozinha. Nos despedimos com um aceno de mão, mas os olhares disseram muito. Se eu não estivesse sozinha, jamais teria desejado a ela minha mais sincera compaixão, a uma completa estranha.

Quando cheguei a Lauterbrunnen, parecia estar num sonho e subi a rua sem tirar os olhos da cachoeira Staubbach. Quando a proprietária da pousada abriu a janela do quarto que foi meu por 2 dias, e vi a cachoeira mais fotografada da Suíça, comecei a chorar e a abracei em agradecimento, perguntando se ela sabia que morava no paraíso. Sim, Kate sabia. Gente, eu nem estava na TPM, por que tanta sensibilidade???

Naquela tarde, tomei o trem até Wengen, no alto do vale, e vaguei pelas ruas residenciais entre casas alpinas e quintais com hortinhas e jardim de flores. Achei uma trilha e em algum ponto dela encontrei Mike, um senhor inglês sentado num banco com uma das vistas mais lindas que eu tive o prazer de presenciar. Ele contou que sempre ia a Wengen com a esposa e aquele era seu primeiro retorno após sua morte. Claro que não tive coragem de me despedir e passei o resto do dia com ele, que fez questão de me levar até a igrejinha de onde a vista é ainda mais linda. E cada vez que surgia uma pausa em nossas conversas, eu fitava o vale e me emocionava.

Lauterbrunnen vista de Wengen

Quando finalmente disse que precisava tomar o trem para o vale, estiquei o braço para um aperto de mão, mas ganhei um abraço tão sincero quanto minha surpresa. Não tinha feito nada, mas depois percebi que tinha feito algo pelo velho Mike. Um completo estranho.

Viajar sozinha X viajar acompanhada: diferenças

Não consigo jogar este jogo, como tudo na vida, há vantagens e desvantagens, são viagens diferentes, com situações diferentes. Como eu disse, não me faz falta não ter companhia, mas várias vezes pensei: “o Álvaro gostaria muito daqui”. Mas não teve drama: aquela viagem era meu presente, todinha para mim.

Talvez numa primeira viagem sozinha, seja aos 50, 30 ou 80, você queira listar coisas novas para fazer, mas não foi meu caso, o objetivo foi experimentar a solitude e passei na prova com nota máxima. Mas como toda viagem, há sempre algo novo acontecendo, e além de remar num lago alpino, atravessar pontes sobre penhascos, fazer uma trilha de nível intermediário, venci alguns desconfortos como ir a um happy hour sozinha num pub ou jantar sozinha num restaurante. Mas acho que o que meu trouxe euforia momentânea foi tomar uma carona com uma ítalo-suíça que acabara de conhecer no trem em Lugano para ir ao Lago di Como, diante de uma inesperada greve na Itália. Eu nunca tinha tomado carona e jamais isso teria acontecido se eu estivesse com meu marido. Aliás, meu precavido marido nem teria deixado Lugano numa situação de greve de trens – e teria perdido um dia lindo navegando até Bellagio.

Comprar uma GoPro foi uma decisão acertada para fazer selfies que incluíssem as paisagens, já que não teria meu personal photographer nesta viagem (ahaha). E usar uma GoPro aos 50 anos é um feito, aquela meleca tem tudo pequeno, e é um tal de tira óculos de sol, põe óculos de grau, tira óculos de grau, põe óculos de sol…

Lago Thun, perto de Interlaken

Quanto à bagagem, usei mala do tamanho que sempre uso para 12 ou 15 dias na Europa: tamanho G. Não tive problemas em arrastá-la pelas ruas ou para subir nos trens, que na Suíça em geral têm o piso na mesma altura da plataforma. E mesmo quando viajo com meu marido, sou eu quem carrego, arrasto e cuido da minha mala, direitos iguais!

Mas é claro que viajar sozinha para a Suíça é diferente de viajar sozinha para um país latino. Em nenhum momento me senti insegura, mas também não fiquei pela rua depois das 23h, sempre dormia cedo para aproveitar o dia.

Alguns cuidados a tomar numa viagem solo: deixar um roteiro com informações de hotéis/pousadas onde vai ficar. E eu sempre me comunicava com minha filha ou marido pelo menos antes de dormir, uma forma de avisar que estava tudo bem.

Mais transformador do que viajar sozinha é…

Como você vê, viajar sozinha não trouxe nada digno de uma entrevista com a Fátina Bernardes. Não houve vitórias ou conquistas, porque sinceramente nesta altura da minha vida já colecionei várias vitórias e várias perdas e tenho consciência de que há mais conquistas pelas quais lutar no dia a dia do que em viagens. E é por isso que acho que se você não pode viajar aos 20 ou 30 anos para amadurecer, a vida se encarregará disso. Alguém aí tem pressa?

Quando voltei da Suíça, marido e filha me contaram que enquanto eu dormia o sono dos sonhos, ao som da cachoeira em Lauterbrunnen, minha filha desencadeou um problema de saúde. Passado o turbilhão inicial, diagnóstico e tratamento em andamento, recolhi meus pedaços e busquei auxílio espiritual, que me levou a compreender que mesmo doenças têm um propósito, e às vezes surgem para nos reconectar com um pedaço de nós que estava abandonado. Foi mais transformador do que viajar sozinha. A vida, sempre a vida, é quem nos ensina.

No Monte Titlis, feliz da vida

Feliz ano novo

Coloque a preocupação de onde ir, vestir ou comer na noite de 31 de dezembro de lado para encerrar o ano refletindo sobre o que te aconteceu, o que gostaria de mudar e conquistar no próximo. É também momento de agradecer ao universo pelo que tivemos, tenham sido momentos bons ou difíceis. Esta é a mágica do calendário: a cada dia temos uma nova chance, mas a virada do ano intensifica este sentimento, dando uma piscadela e dizendo que tudo pode mudar – ou não, só depende de você.

Leia também depoimentos de mulheres casadas que viajam sozinhas ou sem seus pares em Mulher Casada Viaja – Sozinha.

Outras Retrospectivas

Confira o que as mulheres viajantes do 8on8 têm a dizer em suas retrospectivas, que podem servir de inspiração ou fonte de informação para sua próxima viagem:

Picture of Marcia Picorallo

Marcia Picorallo

Escrevo o Mulher Casada Viaja com carinho desde 2014, compartilhando minhas impressões dos lugares por onde passei, inspirando e ajudando leitores a planejar suas aventuras.

Índice

Picture of Márcia, a viajante

Márcia, a viajante

Bem-vindo a bordo - e nem precisa apertar os cintos! Escrevo o Mulher Casada Viaja com carinho desde 2014, compartilhando minhas impressões dos lugares por onde passei, inspirando e ajudando leitores a planejar suas aventuras.

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COMENTÁRIOS

Respostas de 21

    1. Se rebeldia for largar parte de nossas responsabilidades para outra pessoa, para a gente tirar férias de exatamente tudo, então é um ato de rebeldia, sim. Mas acho que liberdade é a palavra exata para definir o que é viajar sozinha. Abraços, Giselle e ótimo 2020 pra você!

  1. Estou tomando coragem para minha primeira viagem sem marido. Esse texto só me motivou e veio na hora exata. Obrigada e feliz ano novo.

    1. Acho que minha primeira sem o marido exigiu mais ‘coragem’ do que esta completamente sozinha. Que bom que ele te motivou, mesmo eu acreditando que não é a oitava maravilha, ehehe. Bom planejamento pra você, espero que curta tanto quanto eu curti a minha.

  2. Que viagem incrível, confesso que não consigo ficar sem meu marido, a despedida seria tensa, principalmente lá do outro lado do mundo, vc é corajosa e suas viagens são top 🙂

    1. Oi, Paloma, não sou corajosa, não. Seria se eu tivesse ido pra um país pobre e carente, na África, por exemplo. E quanto a ficar sem marido, depois de tantos anos faz miuto bem cada um ter um tempo pra si de vez em quando.

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